A INVEJA, A ALEIVOSIA E A HIPOCRISIA ENTRE POETAS E ESCRITORES
Crónica de Rodrigo da Silva
A inveja, a aleivosia e a hipocrisia fazem parte integrante, são atributos dum gene imanente da natureza humana? Pois faz, dizem os pessimistas. Até agora fez e faz, sempre fez retrospectivamente, e está para durar indefinidamente?... É pensável que continue até ao fim dos tempos, seja ele qual for; é possível, mas quem é optimista diz: não, há-de mudar! E é porque eu não sei o que são essas deficiências, e não possuo essa característica, apenas constato o facto e a ideia, sem porém confirmar tais deficiências no que sou, que digo não pode continuar. E é também porque eu não sei o que é, e quando pergunto a pessoas, elas me dizem o que isso é, que me abismo também. Como eu, devem pensar centenas de milhares de pessoas (milhões?). E o aleijão constatado irrita-me, contraria-me, chateia-me, entristece-me. Que ainda haja uma maioria a aceitar tacitamente, sem nada fazer para alterar comportamentos humanos, defeitos e deficiências congénitas, genéticas, imemoriais, leva-me a pensar que tudo isto é absurdo; São características defeituosas animalescas herdadas desde os primórdios da vida na Terra, por todos os humanóides actuais, que os aproximam bem dos símios a contarem já milhões de anos de existência. Se calhar nunca se pensou seriamente em mudar fosse o que fosse no comportamento arraçado que urge alterar. Será ele tão genético assim, provindo dos trogloditas e remonte também à época jurássica?
E é por este lado que seguimos no uso do discurso desta quadratura sem solução à vista: enveredamos por aqui neste agora, só para confirmar deficiências da natureza abicharada detectada até na área do intelecto artístico, ou seja, vamos mergulhar na área da Literatura. Ela também reflecte o pensamento do primata, meu primo, irmão de sangue, com o meu ADN: falemos por exemplo da “Questão Coimbrã”, célebre por esta designação, contenda singularmente polémica em que um grupo de escritores e poetas inovadores tentam impor e consubstancializar novas normas neste área do saber e da sensibilidade humana. Faltou muito pouco para que, do duelo entre Antero de Quental e Ramalho Ortigão, um deles saísse morto da refrega à espada, contudo ficou o segundo ligeiramente ferido em Arca d’Água. A pertinácia e as convicções de Antero ficaram como símbolo da nova vaga de escritores e aos poucos os velhos românticos e ultra-românticos foram-se silenciando. Seguir-se-iam a vários opúsculos escritos de um lado e do outro, e as famosas Conferências do Casino, onde os defensores da nova corrente literária expuseram as questões suas contemporâneas, “religiosas, literárias, políticas, sociais e científicas num espírito de franqueza, coragem, positivismo” como disse Antero em carta a Teófilo Braga. Eça de Queirós defendeu então o realismo, inspirado em Proudhon; o que se pôs à prova foi o confronto entre a nova mentalidade aberta às novidades e aos avanços de todas as áreas artísticas e científicas do saber, e a velha mentalidade fechada nas suas convenções e tradições. Efectivamente, e esta é a grande questão recorrente periodicamente, a Arte acompanha o seu tempo e está atenta e aberta às novas descobertas científicas, filosóficas, à evolução social, e tende a absorver todas as novidades que se geram à flor das imperfeições terrenas.
Continuamos a viajar no tempo estético, outro exemplo: Fernando Pessoa não gostava do ideário poético de Teixeira de Pascoaes; achava-o excessivamente saudosista, um ultra-romântico “hors de son temps”, um passadista. Mas como este era mais velho e considerado o guru da Literatura nesse tempo, rende-lhe mesmo assim algumas homenagens, muito contidas; algumas até são ligeiramente sarcásticas. No fundo, F. P. detestava-o, assim como o inverso era verdadeiro: T. P. não podia nem um bocadinho, com o novo génio. T. P. achava que F. P. , neófito ainda mal conhecido, era um poeta menor, com mau gosto para a Arte, de acordo com a estética concebida pelo poeta amarantino, estética essa que o tornava alérgico à novidade.
Mais um exemplo: Eugénio de Andrade achava Manuel Alegre um pateta alegre, homem demasiado contundente, político «engagé», lutador, com certeza querendo também referir-se a “essa mãos que fazem a guerra” e com elas também se faz a paz; mas apesar dessa visceral repugnância, estética e pessoal, convidou-o para um ciclo de conferências na sua própria Fundação (hoje extinta). Se isto não é hipocrisia, digam-me então o que é?
Ainda mais outro exemplo, como quem digere tremoços: Camilo foi o melhor escritor do seu tempo, era a época romântica, Wertheriana, Shakespeariana, Bethoveniana, por toda a Europa românica e anglo-saxónica. Porém, quando Eça de Queiroz apareceu com o realismo e o positivismo num discurso e estilo diferentes, Camilo não se conteve e acusou-o de mau prosador e mau ideólogo, assim como pouco vernáculo. Curioso não é? E o mais curioso e paradoxal, é que Camilo ao imitar, com arremedo, o excelente Eça produz os seus mais admiráveis e últimos romances; a sua adesão ao naturalismo e ao realismo dão outro esplendor ao velho escritor que adopta a novidade, apesar de si mesmo.
Ainda outra curiosidade nesta divagação norteada: nós sabemos que Lobo Antunes e José Saramago só se conseguiam ver pelas costas. José foi Nobel, quando boa parte da nossa fina intelectualidade, a mais refinada e tradicionalista pendia para o seu rival, ficando decepcionada. Na verdade, nunca nenhum deles teceu uma saudação ou um louvor ao seu par contemporâneo. Aqui não há hipocrisia, há apenas uma indiferença dissimulada, descarada, talvez desprezo e dor de cotovelo por parte de L A . Se calhar até ambos se admiravam sem o admitir, mas foram incapazes de manifestar um pouco de afectividade e reconhecimento, que até nem lhes ficaria mal, antes pelo contrário. Saramago dizia que a Literatura portuguesa actual é ele e dele, e ele é o seu legítimo representante, e, por outro lado, L A diz ostensivamente que os seus romances são os melhores que se escreveram em Língua Portuguesa até hoje. Os defensores de J S dizem que a obra dele vale todos os romances escritos até ao tempo presente, e os de L A contradizem que este é o único português a ter merecido o Nobel, e até vão ao ponto de afirmar que um livro dele vale toda a Literatura Portuguesa. No entanto, ambos se esqueceram que o nosso melhor romancista, a seguir a Eça de Queiroz foi e é, sem dúvida, Vergílio Ferreira, escritor que esteve sempre fora de qualquer contenda com a sua admirável modéstia, só igual ao seu imenso génio.
Houve de tempos a tempos crispação entres escritores e poetas, não só neste País. Conhece-se efectivamente a vida amorosa entre Verlaine e Rimbaud que terminou numa luta à pistola, azeda e brutal e que acabou por os separar definitivamente, também em nome da Arte. Assim como é sabida o companheirismo entre Van Gogh e Gaughin que terminou por feroz zanga, uma disputa armada com corte definitivo de relações afectivas e pessoais.
Na música a crueldade do cortesão Salieri fez a vida negra a Amadeus Mozart. Praticamente, deu cabo da sua reputação e brilho geniais, e levou à sua morte prematura por desconforto e desgosto. E este exemplo é um episódio histórico de grande maldade e inveja intoleráveis entre compositores músicos de sensibilidade ímpar.
Finalmente, nesta questão de invejas, ciumeiras, hipocrisias e outros sentimentos biliosos e belicosos, o menosprezo de alguns poetas modernos e modernistas demonstrado publicamente a Fernando Pessoa é uma realidade constatada nas últimas gerações depois de meados do século passado. Todos os surrealistas portugueses e boa parte dos modernistas concretistas, também os avessos a Escolas, os novos parnasianos, os cultores do verso livre ou solto, todos eles desprezaram e desprezam-no com desdém. Todavia, retirá-lo do pedestal que o mantém erecto e radioso em todo o mundo, é difícil e não vai estar ao alcance tão cedo dum novo fenómeno literário. Pela sua heteronimia e encarnação de personalidades diversas, diferentes, múltiplas, ele apagou toda a poesia do seu tempo e a pesada sombra obscurece todos os poetas que se lhe seguiram e proliferaram como cogumelos em mato bravo e fragoso, quase estéril, desde a sua morte.
Contudo, qualquer obra é tão vulnerável como qualquer outro meio de comunicação. Os tempos hodiernos, no que se refere à conquista e à descoberta inovadora e/ou revolucionária têm conquistado pouco terreno novo ou relevante para que o saber científico denote diferenças essenciais ou clivagens importantes na cultura contemporânea. Einstein continua no seu pedestal, Darwin, Heidegger, Bach, Wagner, Picasso, Dali, Jean-Paul Sarte, Albert Camus, Simone de Beauvoir, Brecht, Bertrand Russell, António Damásio, idem, idem. O estruturalismo continua a impor-se na Literatura. Saussure, Lacan e Freud ainda dominam grande parte desta cultura ocidental. É esta aura que continua a sombrear toda a moda despertada após eles, e permanecem os citados com estatuto de verdadeiros clássicos, depois dos clássicos, estendendo-se pela modernidade. Efectivamente a moda é passageira, a voga é ainda mais breve, e a vaga dura muito menos tempo (nem um lustro permanece entre nós); Efectivamente, os percursores e os cultores das grandes tendências que fazem vacilar os arquétipos culturais, os modelos de desenvolvimento, a alteração dos psicoarquétipos tradicionais que atrasam indubitavelmente o progresso da humanidade continuam pelos séculos intocáveis, lidos e relidos, apreciados e idolatrados. Estudados em profundidade e alvos de teses universitárias e ensaísticas pelos séculos fora no mundo inteiro. E as suas obras reflectem as grandes inovações das épocas áureas, as mais marcantes, sobretudo as que representam os avanços na evolução da nossa condição natural e mortal.
Realmente, só a mentalidade comportamental dos humanos em áreas que correspondem às relações sociais é que não evolui. A inveja, a rivalidade, a ciumeira, o desprezo, o menosprezo são iguais às dos símios, que nos deram origem, pois continuamos nestes aspectos da relação humana iguais aos primatas, nossos primos, provavelmente sem quase ninguém gostar do que proclamo aos quatro ventos e à sucessão de sóis e luas. Mas afirmo-o com convicção. E apesar da pouca concordância, ou indiferença por aquilo que apregoo, proclamo-o, porque cumpro uma função que decidi adoptar sem vacilar: a de denunciar, a de consciencializar, a de tentar provavelmente sem reconhecimento de quase ninguém, alterar psicoarquétipos comportamentais, e por julgar que eles afectam a evolução da humanidade; aliás creio firmemente que é esta uma procura, na qualidade de dádiva sem finalidade prevista, destinada a podermos todos atingir a máxima felicidade possível, ou seja, aquela restante que está ao nosso alcance, no planeta onde todos habitamos conjuntamente. E já não me importo que seja muito ou pouco querido pelo que venho a escrever. Consciencializar nada tem a ver com agradar a todos nem obter louros imediatos, ao contrário dos que fazem vénias ao demagogo ou a pessoas invertebradas que vivem da servidão mas são compensadas lautamente. As pessoas que se curvam pela vénia merecida, não são as mesmas que se arredondam pelo preito da conveniência só para receber favores da mediocridade dominante. Estas são servis e serviçais, todavia, as outras serão enaltecidas no tempo próprio, e merecem honra e prestígio, sumo propósito e fim de toda a criação , de toda a vida com valor de referência e exemplo.
22 de Junho de 2010
Leia com atenção estes sites que corroboram a minitese do autor desta crónica:
http://www.arqnet.pt/dicionario/quentalat.html
http://www.digestivocultural.com/ensaios/ensaio.asp?codigo=163
http://www.velhosamigos.com.br/Colaboradores/Diversos/vangogh.html
http://educacao.uol.com.br/biografias/ult1789u513.jhtm
http://www.iep.utm.edu/lacweb/
http://www.ipv.pt/millenium/ect2_mjf.htm