por Rodrigo da Silva
Banquete é uma palavra que em português significa uma festa para celebração dum acontecimento importante e permanentemente relembrado na vida das pessoas. Hodiernamente também se lhe chama "copo d’ água", expressão eufemística para suavizar a dor dum bom preço a pagar pelos pais dos noivos nessa cara brincadeira ou pelos próprios se forem abastados. Na verdade, as fases mais marcantes da vida dos nossos semelhantes são o baptizado, a comunhão, o casamento, as bodas de prata, de ouro e de diamante, eventualmente o nascimento dum(a) herdeiro(a). Só a morte, sendo a última a esperar por alguma pompa de reconhecimento à vida acabada, e, sendo, de todas, a mais definitiva, e inolvidável para quem fica a vê-lo partir para um buraco cavado em terra chã, não tem direito a nenhum mísero banquete, mas, ao invés, expõe-se à vigília tristonha e chorosa na capela, com uma missa no dia seguinte a preceito, com direito a choros, fungos, rostos trombudos no transporte do pesado fardo cadavérico, assiste insensível a pesares, à expressão das habituais condolências, alguns sorrisinhos maliciosos ou maldosos por senhoras eventualmente mal mal maridadas, nota impavidamente alguma satisfação de alguém presente por maus tratos infligidos, aproveitando-se este da cena para gozar o panorama que nem um preto das arábias; e ainda é também comum ver, algumas vezes, umas carpideiras à socapa misturadas no agrupamento, mediante alguma recompensa negociada, especialmente quando é preciso dar ao acto uma espectacularidade digna de registo, dedicada ao grande senhor falecido, cuja perda é irreparável, insuperável por mais ninguém, ficando o seu lugar vago, impossível de substituição para suprir o seu valor e nunca haverá alguém com a estatura moral e ética do finado, sendo isso ou não verdade. Curiosamente, há ainda certos sítios no mundo que a celebram com um repasto frugal oferecido aos fiéis devotos visitantes finais do inerte e estático cadáver, bem composto e vestido para a viagem final num vagão feito urna do melhor madeiro e com as mais lustrosas ferragens, onde não falta a fechadura com uma chave de latão que a viúva recebe consternada e chorosa, depois de fechado e trancado o vistoso caixote; guarda-a ela depois do acto final com ritual soberbo, impressionante... Eventual e finalmente há ademais outros ainda enterrados com pompa e circunstância, em cemitérios mais espampanantes acompanhados, sem saber nem sentir, ao som de fanfarras briosas dos Bombeiros, ou dos Militares, ou da Polícia, presentes à triste ocorrência com seus fatos de gala bem escovados e engomados para a ocasião única de quem se fina para sempre sem apelo nem agravo.
O Banquete de Platão também conhecido por Simpósio é tudo menos isso aí retrocitado; é uma reunião entre filósofos tertuliantes, que aproveitam as data e hora para discutir temas que lhes são caros, e mais se parece na sua linearidade com o «copo d' água» agora em moda, mas sem a figuração atribuída eufemisticamente, uma vez que os filósofos decidiram logo no início que iguarias e bebidas alcoólicas não teriam provimento; decididamente estavam ali para uma discussão sóbria com cabeça fria, exercitando o seu pleno raciocínio esclarecido.
No sentido comum do nosso tempo, a palavra designa um festim, onde a festa impera, um convívio fora da mesa, em seguida à mesa onde não falta música no envolvimento, nem comida variada, nem bebida diversificada. Os convivas entram, cumprimentam-se, alguns abraçam-se, há muitos a distribuirem beijos, e a ambiência está cheia de flores à entrada, dos lados, aos cantos, no centro da mesa, ou das mesas, e todo este aparato dá uma graça especial, uma satisfação visual e comportamental, às vezes, até olfactiva, inolvidável. À volta ou em sentido longitudinal, várias acepipes são postos à mão de amarfanhar, umas doses de salgadinhos, uma mesa com bebidas, vários e requintados cocktails, copos de cristal adequados a cada espécie de vinhos velhos ou bebidas sem álcool, e as cadeiras ficam ansiosas à espera de serem ocupadas depois das saudações e das curtas conversas triviais de circunstância. Na mesa, em destaque aparatoso a louça da Vista Alegre ou de Limoges.
O espírito está alegre, a boca bebericando, a palavra no início brotando com nexo, e no fim revertendo desconexa. Mas o banquete é sempre um dia de alegria, salvo raras excepções, essa por exemplo na qual um dos convivas principia a disparatar ou fica agressivo e insuportável; não é a primeira vez, nem a segunda, nem a terceira vez que acaba com comensais no exercício do violento murro nas queixadas e sujeita a uma valente bofetada nas ventas, nem a quarta vez em que há feridos sangrando dos membros, tronco ou cabeça violentados, logo disparados a grande velocidade para o Hospital mais próximo. São, no entanto e todavia, diga-se em abono da verdade e do azar, casos raros.
Ora, acontece que houve sempre banquetes desde que o homem e a mulher se constituíram em agrupamentos com algum desafogo para alguns (para alguns). Nas celebrações de alto gabarito, os homens da sociedade actual mais abasrados vão com o seu melhor fato escuro, smoking ou fraque, dependentes da hora em que se apresentam para a festividade, e elas vão sempre muito belas no seu vestuário feito a propósito na melhor costureira da zona, quando não as da moda des melhores marcas, para participar no evento feliz tão belas ou ainda mais esplendorosas do que os homens, que não se cansam de as mirar indiscretamente ou de soslaio para não praticarem a triste figura do marialva mais atrevido; olham para elas e dizem estás linda como uma princesa, mesmo que isso não seja nada parecido com a realidade. Dizem coisas costumeiras em tom cheio de graciosidade, e expelem comentários brejeiros a propósito de tudo e de nada, coisas corriqueiras, usando dos clichés em voga, alguns disparates inócuos; por outro lado, as que são feias vêm de tal modo bem pintadas, e aparaltadas, com vestidos soberbos tão vistosos que de casulos se transformam em formosas borboletas! Uma delas mostra a coxa provocante, outras as costas ao léu da cor do branco nívea, ceiram às flores mais deliciosas, e outras ainda recorrem a um bom e rasgado decote para exibir um bom par de brancas rolas, quando não são pretas retintas ou árabes mediterrânicas. Oralilolá, coisa linda de arregalar os olhos, esse rego bem pronunciado altivado pelo espartilho do sutiã aramado.
Mas o banquete que faz parte desta crónica, abdica de todo esse aparatoso espectáculo; vai ser uma reunião de filósofos para tertuliar. Mulheres nem cheirá-las nestes "banquetes" antiquíssimos dos anos 400 a.C. (antes de Cristo); eles no género eleito duma eventual confraria de intelectuais eram os mais conhecidos e destacados filósofos e artistas ou literatos da época pré-cristã a que nos reportamos, e o repasto sem abastança servia, ao contrário dos acima descritos, para a anunciação de ideias seleccionadas no sentido da discussão pela essência do conhecimento humano à procura da sua natureza ontológica ou genética. Destarte, haveria que refutar, contradizer, e,sintetizar no final o manancial dos discrusos obtidos, De facto, não será bem o que hoje é considerada uma tertúlia, pois as que existem actualmente não utilizam método nenhum, e são preponderantemente monólogos entediantes, nem há escolha verdadeira e séria dos convidados boa parte das vezes, e ouvem-se de quando em quando asneiras e burrices que bradam aos céus, numa escolha de locais ditos cafés habituais disponíveis para estas reuniões em zonas pré-estabelecidas desde há anos. Mas, enfim, o que é preciso é animar a malta.
Ora (reiteramos este ora) acontece, como já se disse, que neste banquete descrito por Platão, logo no início se pediu contenção no repasto, especialmente na bebida alcoólica, de modo a poderem manter-se sóbrios com a total clareza de raciocínio para que o disparate fosse evitado, e nesta esteira frugal fossem excluídas anunciações desconexas. Interessava principalmente que os temas fossem discutidos com lógica e método. As conclusões seriam anunciadas no final, e neste, como noutros casos, era Sócrates quem retirava da discussão as sínteses e as conclusões mais ajustadas e sábias.
Aconteceu ainda que Sócrates foi o último a chegar ao local e já era esperado pelos convivas com ansiedade pelos convivas ou confrades, tal era a importância e hegemonia que lhe dedicavam. Aproveito para confirmar o que muitos já sabem; ele não escrevia nem registava nada do que dizia ou proclamava. Foi Platão, seu discípulo, quem o fez por ele, revelando as suas ideias, as suas sínteses e conclusões. Foi exactamente o que aconteceu igualmente com Jesus Cristo, que nunca escreveu uma palavra, e foram os apóstolos que se encarregaram de o fazer. Escrito, só na morte, a legenda soturna e tétrica na parte superior do madeiro, onde foi sacrificado com as palavras: ESTE É JESUS, O REI DOS JUDEUS. Legenda soturna e impiedosa, suprema humilhação e desafio provocatório para os gentios que talvez nem tenham percebido devidamente o sarcasmo da célebre inscrição, bem visível a todos os espectadores romanos e fariseus.
Ora, quando chegou o Mestre dos mestres já todos tinham aceitado como prâmbulo a sugestão inicial de Pausânias para que aproveitassem o convívio de modo a que cada um fizesse algo diferente e todos se mantivessem sóbrios. É Eriximaco que abre o debate para louvar Eros, propondo que todos deveriam discursar sobre este deus, para valorizar ao máximo o amor.
Já na presença de Sócrates, o último a chegar, como já foi dito, à reunião elitista, este sugeriu que antes de se falar sobre o bem que o amor causa, e dos frutos obtidos dele, deveriam definir primordialmente o que é o amor. Diotima de Mantinea, disse ele, uma sacerdotisa famosa tê-lo-ia iniciado na filosofia do amor, ou melhor definido com a completa propriedade a genealogia do amor.
Fedro inicia a sua intervenção, a quem se segue Pausânias na mesma esteira sequencial para afirmar o efeito que o amor exerce no enamoramento, uma influência notável não só na alma como ainda executa uma exraordinária harmonia no corpo inteiro.
Aristófanes filosofa sobre o amor caracterizando-o como o complemento necessário de cada ser humano, e já nessa época revela que havia os géneros masculino masculino, o feminino feminino, e ainda o masculino feminino, este chamado andrógino bissexual. Quer dizer, comprova-se a existência ancestral, hoje muito discutida, desta questão já então refrida pública e notoriamente nos discursos filosóficos das questionáveis homossexualidade, heterossexualidade e bissexualidade. Revelava-se o corte do andrógino por Zeus (Deus), em ambos os sexos diferentes, e destes aspectos falar-vos-ei noutra ocasião; virtualmente, e digo virtualmente porque estamos em presença de fortes convicções helénicas esse corte explica à luz da sabedoria da época, o amor heterossexual da maiotia da população. Mas há mais casos: há os que suportaram o corte do andrógino, feminino feminino e essas passaram a ser lésbicas, o mesmo acontecendo com o andrógino masculino masculico, que se reverteu em gays. Em ambos os casos, no fim de contas, cada um une-se ao seu igual, como foram os casos dos heterossexual, excepto o caso do bissexual que se liga tanto a um caso como a outro.
Platão intervém para referir-se aos amores homossexual feminino e masculino. E titubeia ao dizer que quando essas metades se encontram sentem as mais extraordinárias sensações, intimidade e amor, ao ponto de não desejarem mais se separar, sentindo vontade de se fundirem numa só criatura. E remata: esse é o nosso maior desejo ao encontrarmos a nossa cara-metade, tal como acontece no caso do amor heterossexual. Em conclusão, o amor para Aristófanes é o desejo e a procura do todo, ainda não completado por causa da nossa incompreensão e injustiça em relação aos deuses (atentem nesta força da crença da mitologia provinda da antiguidade que se reverteu em civilizadora durante muitos e muitos séculos).
Agaton, na qualidade de anfitrião do suposto "banquete" que serve de nome de capa à obra escrita, e este nome ele lhe dá certamente por associação de ideias em sentido metafórico, figurando-o como sendo um festim espiritual, uma vez que a comida e a bebida não estavam à disposição do desejo de comer e beber, como era costume. Aliás, no dia anterior todos se tinham embebado. Contudo, ao contrário dos anteriores interlocutores/interventores da tertúlia filosófica, é ele quem ajuda também a torná-la arbitrária e um pouco anárquica, afirmando que finalmente não vai enaltecer os benefícios de Eros que este doou aos humanos, mas sim, propõe-se cantar o próprio deus e a sua essência, descrevendo-lhe o dote, ou seja, aquilo de que foi dotado. E depois de descrever as virtudes atribuídas a Eros, espantosamente, e num volte-face fenomenal, pela surpresa causada na relação contrária à sua proposta inicial, distancia-se dela e do seu propósito metodológico: cantar o próprio deus versando-lhe o dote. Já nessa altura havia como se confere, quem desconsertasse o que estava a ser consertado.
Finalmente, é o momento de Sócrates intervir na amena discussão, afirmando que se o Amor é amor a/de algo, esse algo é uma apetência ontológica do ser humano, reflectida no seu mais intrínseco desejo. E entretanto mais disse: se esse algo só pode ser desejado quando lhe faz falta, e não quando o possui, então ninguém deseja aquilo de que não mais necessita. Especificando: aquele que deseja, deseja aquilo de que é carente, mas quando não carece desse objecto ou dessa virtualidade, deixa de se interessar e irreconhece-o logo após.
É Platão quem extrai as conclusões na peça por si escrita; na prática é ele quem sintetiza toda a exposição ideológica, e insere nela a sua opinião pessoal. Reafirma que o que se ama é somente aquilo que não se tem, e se alguém se ama a si mesmo, ama-se sem recorrer à essência do amor. O objecto do amor é algo sempre ausente, e por consequência é, como tal, um objecto permanentemente rebuscado, procurado. É como a conquista da verdade, logo que é conseguida, logo se desvanece pela sua anulação obtida; conhecida, apoderou-se dela, apropriou-se dela, ela fica dentro de si permanentemente... Anula-se destarte a necessidade da sua busca. Todavia, sendo o Amor o amor que eventuaalmente nos faz falta, forçosamente não é Belo nem Bom, nem um Bem a perseguir por todos os componentes não se amalgamarem; o Amor só o é pelo amor ao Belo e ao Bom. Não há por conseguinte nenhum motivo para desejar o que já temos. Neste mito de Eros, o que se nota é que há, verdadeiramente, uma natureza duma falta ontológica de quase tudo, levando em consideração que Eros terá sido filho das entidades mitológicas divinas : o Recurso e a Pobreza, nomes que já dizem quase tudo quanto à falta de dote na herança deles recebida.
Termina dizendo que o amor é um dos maiores e melhores bens da humanidade (associando-o à inteligência e à sabedoria), e anuncia mais: que ele nem é bom nem um mal em si mesmo, Contudo, na prática admite nesta condição ontológica uma natural explicação para o amor bissexual, assim como para o homossexual, pois não se afasta da verdade vivida nesse tempo. Ainda acrescenta que quem ama, quando ama, não exerce um poder nem pressão sobre alguém, nem sequer demonstra a força inerente a uma conquista, sendo crucial que cada um saiba ser correspondido, ou seja, haverá necessidade de ir ao encontro da verdade, que se esconde lá muito dentro do imo de cada um de nós.
O tão célebre BANQUETE, de Platão, também conhecido por Simpósio, como já anunciámos, é um factual diálogo incompleto inserido no seu tempo sobre o amor, porém é muito curioso e interessantíssimo para avaliarmos os primeiros e principais conceitos esteticos durante mais de dois milénios da nossa civilização, que durou até há bem pouco tempo (também hei-de explicar por que razão estamos a começar a viver um futuro de pós-cultura civilizacional), não sendo o único pensador que o advoga. Aliás, e a meu ver, falta equacionar, em tudo o que foi dito, outros conceitos que também na Grécia antiga pela voz de outros filósofos se desenvolveram. O amor nesta peça é relativo, inspirado por fortes convicções mitológicas a que os helénicos eram consciente e/ou inconscientemente muito arreigados; nomeadamente, em muitas das suas equações aparecem, vez ou outra, conteúdos algo irracionais, opinião aceite por críticos da especialidade. O amor na obra descrito pela fala dos interventores do mais elevado gabarito, pouco diz do amor dividido noutras grandezas e noutras perspectivas, como por exemplo a dimensão do Ágape, o amor ao outro sem qualquer espera de reconhecimento, nem a mínima recompensa aguardada. Tantos e tantos houve na História desde a Revolução Industrial, e muito antes na prática do missionarismo, movimento religioso e altruísta que defendeu a generosidade e a solidariedade da acção entre os povos, praticando o pricípio do Ágape (o Amor incondicional). Este também é real e a falta desta equação é um bom motivo para eu regressar, um destes dias, a equacionar outras ideias sobre o Amor, num futuro próximo e numa ocorrência a propósito de algo que mexa com estes conceitos; contudo, melhor seja na altura própria ou apropriada em qualquer seleccão temática que admita novas definições analógicas transversais, onde possam ser introduzidas na diagonal, quer seja também num qualquer outro alinhamento onde possam ser ajustadas na recorrência.
30 de Julho de 2010
Divirta-se, se tiver tempo disponível, ou cultive-se ao analisar em pormenor o conteúdo dos links abaixo transcritos:
http://somostodosum.ig.com.br/conteudo/conteudo.asp?id=3970
http://www.infopedia.pt/$androgino
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