Terça-feira, 26 de Outubro de 2010

O MAR

O MAR
por Rodrigo da Silva
 
O mar que vejo (semelhança com o beijo) é às vezes um lençol espelhado. Hoje não está assim porque o Sol ainda está a pique. Mas o mar, que não vejo nem beijo, assanha-se de vez em quando e rebenta em marés-vivas, no Outono, especialmente no Inverno. Nessas ocasiões vejo-o da janela, não me aproximo, e ele arredonda-se no horizonte. Segreda-me que é uma linha circular, o arco de uma ponte na forma de um arco-íris cortado a meio.
 
Prefiro-o calmo porque me apazigua. Quero-o ao ritmo do coração, ele então sintoniza-se comigo; é um amigo, é amante, amoroso, regularmente apaixonado.  
Quando se ira, é um perigo para os distraídos que não o respeitam e passam junto. Há umas semanas atrás, na Foz do Douro, ele levantou uma onda gigante e engoliu literalmente dois ou três passeantes, e, insatisfeito, partiu vidros de automóveis e amolgou os capôs. Uma traição imperdoável. Não me seduz quando encapela, engolfa e enraivece. Nessas alturas afasto-me. É um modo de escolher entre a guerra e a paz.
 
E por falar nesse monstro: a guerra causa horror, e admiro-me ainda hoje do modo como em alguns países, os jovens aceitam pegar numa arma para matar em vez de se absterem, de negarem a ordem, de se oporem ao juramento, de contestarem a obediência, de desobedecerem, de refractarem, de objectarem.
 
É a lei da sobrevivência, dir-me-eis; e eu refuto: é estupidez. Simples, patética estupidez. No fundo despendeis da dependência, esta escravizante. Efectivamente, por traz duma guerra está uma máquina poderosa que se alimenta da ganância ilimitada por dinheiro, da finança. Ela pede-te a imolação, e tu concede-la.
 
Quando fui obrigado a fazê-la, depois do meu exílio durante um lustro em Paris e Londres, e sabendo à partida que seria uma guerra perdida e amaldiçoada pelos vindouros, conheci oficiais que continuaram a guerrear porque não sabiam fazer outra coisa, diziam. Transformaram-se em mercenários e legionários. Depois duma guerra acabada começavam outra sob outra bandeira fosse onde fosse, bem pagos por sinal.  E sentiam-se orgulhosos e vaidosos ao contarem as suas façanhas e chacinas com contagem de mortos e estropiados. São pessoas que imitam o mar que não vejo nem beijo quando atraiçoa.
 
As forças da natureza estão em todo o lado, na água, no ar, na terra, no fogo e nas gentes que habitam este planeta. Fazem parte dum todo e ninguém daí é excluído. Um todo onde coexistem o Bem e o Mal (Deus e o Diabo) em partes iguais. Excepção aos que se excluem, pela sabedoria, duma das partes e é nestes que a Humanidade continua a confiar. Uma minoria, mas seja. É o último reduto para que não se perca a consciência dum holomundo diferente. Que há-de ser, se formos resistindo e missionando. Inquestionável, missão mesmo.
 
26 de Outubro de 2010

sinto-me: irritado c/ vírus informát.
música: antena 2 rdp
publicado por cronicas-de-rodrigo-da-silva às 21:42
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