GANHAR O ESTADO DA DIVINDADE
por Rodrigo da Silva
Escrevo sobre uma folha de cor fúcsia num jornal diário, desenhada com um simples coração avariado entrecortado por letras remissivas, ao ritmo dos batimentos cardíacos, um músculo indolor mas sensível, tão normal quanto o que temos dentro de nós, mais ou menos a funcionar normalmente, excepto quando não acelera emocionalmente em algumas ocasiões de tensão umas vezes extremamente alegre, outras, irritado ou irado, e abranda noutras, especialmente, nos momentos de conforto espiritual e corporal ou de sonolência ou descanso relaxante. Ele é a corda duma lira, ora arranhada com violência por nervos em franja, ora suave como o voo duma ave deslizante.
Corações, um ou outro estão doentes, outros remendados. Substituir no entanto um coração por outro, mesmo doado, seja comprado, ou ainda que seja artificial não é fim deste mundo, nem nada que se lhe pareça… pode ser até o começo de outro espaço universal; porém uma coisa é quase certa – um coração substituto feito à semelhança, e condicionado à medida aparentada do anterior, ganha um lugar perpétuo enquanto o for, desse mesmo que já estava seriamente afectado, letalmente condenado a curto prazo no espaço do mundo conhecido materialmente.
Aquela estória dum povo feliz ser conquistável, aventada na minha penúltima crónica, facilmente apetecível por um povo bárbaro (o guerreiro aguerrido insaciável), põe em questão muitas reflexões a esse propósito, nomeadamente acerca da evolução da humanidade desde os seus primórdios, ou seja, a nossa redigida História Universal. Embora assim seja, quem fala do passado não é para depreciá-lo, porque ele teve uma razão para ser como foi, dadas as características provenientes do animal primitivo, mas, pelo contrário, retoma-o para torná-lo presente redimensionando as sínteses obtidas do seu pensamento acontecido, no sentido de tornar o futuro o melhor possível para nós, assim como para os vindouros. Povos houve felizes em África e na América, no Pacífico tão bem como na Oceânia, e, repentinamente, sem que os visados contassem, pela descontracção em que viviam, foram devastados e subjugados por causa do ímpeto da conquista, provindo de gente ferozmente aferroada por subculturas praticantes da arte da guerra e nunca do amor. Outros foram até sujeitos à escravidão, ou à separação racial (‘apartheid’), sendo igual à classista dos nossos dias. Falando aberta com todas as letras da verdade, nunca notaram e se interrogaram sobre a razão desta evidência: uma classe protegida pelo poder político, clã dum renovado nepotismo, podre de rica, também transitória como sabemos, mas existente com pujança enquanto pode, e outra arrastando-se pela rua sendo pobre, quando não miserável, não é outra forma de descriminação repugnante? Será assim tão aceitável, como aparenta ser na nossa convivência quotidiana? Ou é simples e indubitavelmente obscena. A real e verdadeiramente escandalosa pornografia com muita dose de pornocracia. Tudo o que digo está escrito e mais que historiado; não há dúvida nenhuma que não existe quem confronte esta constatação ou a negue, sob pena de ser também uma símio pós-jurássico, atrasado ou deficiente mental, como todos já fomos noutras épocas antigas, não totalmente extintas. Sim, apesar da evolução, e ao arrepio dela, ainda há, contudo, quem sofra dos males de outrora, e esses são os que atrasam o devir que ansiamos.
Efectivamente, foi sempre a religação com as(s) entidade(s) divinas que subjazeram em toda esta problemática exposta. Em primeiro lugar, a família tal como existe, com diferenças em lugares distintos deste globo, a seguir a relação com os companheiros desta jornada peregrina. Foi, finalmente e em suma, esta relação mãe-pai, mãe-filho/a, pai-mãe, pai-filho/a, estendida invariavelmente aos seus núcleos (o familiar consanguíneo duma genealogia popular ou aristocrática), e, no fim da articulação: a extensão ao clã tipificado por contágio e empatia, que nos fizeram o que fomos e o que somos. Tudo isso analisado leva-nos a dizer que numa reacção harmónica, a sinfonia consegue-se espontaneamente, todavia numa relação disputada é natural haver desacertos, sentirem-se as atitudes pífias, relevar a descoordenação, ou persistir na exibição da fealdade retrógrada do espírito humano mais desconsertado.
Sendo religação (pois que a religião é a religação do ser com a entidade divina), e já que desta falamos como origem de todas as causas e consequências numa atitude contínua e persistente, esse estado que interpela o ser, o estar, o parecer e o agir, a ela nos detemos pelo tempo que for necessário e possível ao arbitrar um julgamento que nos pode melhorar pela interiorização de alguns modelos universais, a que chamo, já algum tempo, os psico-arquétipos.
Quando um budista, um brâmane, um hinduísta, um tantra se posta perante a sua parceira no respeito pela sua entidade integral como se ela fosse a parte do andrógino que lhe falta (também já falei deste conceito noutra crónica), e recebe a religação dos dois corpos num só pelo amor acontecido, nesse preito ele alcança a justa e consciente reciprocidade, e esta atitude permanente marca toda a diferença em relação à religação face à origem para obtenção do estado de graça e da sua inclusão na entidade divina que protege indubitavelmente, pela própria natureza do ser humano, a sinfonia conseguida. Obtém-na por dom natural, alcança-a pela bênção da graça, ganha-a por inteiro no seu imo. Na sequência, e na consequência, toda a comunidade obtém a mesma harmonia, e a sinfonia é conseguida É uma relação dual, depois múltipla, ampliada, uma relação feliz num vasto espaço sociável, além de tudo desejável, exemplar e atractivo ou sedutor, um encontro feliz, sublime mesmo, na última conclusão possível, tradutora de todas as sínteses, que antes eram apenas meras premissas. Seguindo tais preceitos (nada condizentes com preconceitos), uma mais ou menos ampla comunidade, País, territórios sem fronteiras, ou ultrapassando-as, na instância amplamente possível, a sinfonia harmónica conseguida não é mais nem menos do que a felicidade alcançada. Na verdade, um povo ou povos assim doutrinados pela natureza do Bem esquecem-se que estão sujeitos à cobiça dos seus haveres conseguidos pelo trabalho e pela cultura, e nem sequer lhes ocorre na mente que outro conjunto de seres simiescos, com outra religação havida e doutrinada, quer na adoração do paganismo, quer noutra enviesada ao ser divino, a má parte não a tendo verdadeira nem apropriada, os vençam pelas armas e os dominem por longo tempo. Contudo quem se religou à divindade alcançando e ganhando o estado da felicidade pode ser vencido, e eventualmente escravizado, às vezes saqueado impiedosamente ou explorado sem limite, não só sua mão de obra, como também as suas riqueza naturais ou transformadas, ou intelectuais, roubados os seus cofres recheados por riquezas acumuladas, mas nunca conseguirão subjugar ou escravizar a sua alma, a sua tradição, os seus costumes, a sua cultura, a sua idiossincrasia, até que todo o enredo seguinte volte a reiniciar-se… Um povo que se liberta do jugo por meio da desobediência, do desprezo, da guerrilha quando necessária, ou dum inteligente pacifismo que também vence, como já houve provas bastantes na nossa História, o espírito guerreiro da gente aguerrida e ávida do que nunca conseguiu, nem conseguirá totalmente. É tudo fatal como o destino, como diz o rifão associado ao nosso fado, que neste caso está apenas a servir de ilustração a um quadro de José Malhoa, pois não é certo que os impérios emtram a certo momento, ou no momento próprio, em decadência? E que os ora humilhados, um dia serão exaltados? De facto, ele é realmente insatisfeito porque não atingiu a sua correcta e justa realização nem a inteligente religação com as forças do Bem; ele nunca se satisfará, e ao enriquecer, pela pilhagem, consome depois esses recursos na maior futilidade vital: o abuso de todas as substâncias e produtos que consolam o corpo defeituoso, enfraquecendo-lhe consequentemente a alma, se é que a tem, dado que às vezes é uma película tão indistinta que mais parece a transparência da força do Mal oculto.
Na verdade, os dominadores normalmente caem do seu estado imperial pelo abuso daquilo que o corpo não precisa para poder alcançar a sinfónica harmonia e essa forma de agir corrói-lhe o espírito e a mente.
Concluindo: um ou outro povo deveria tentar conhecer a ocasião de efectuar o rastreio corporal e espiritual ao seu estado na História, para consequentemente saber substituir o coração que se lhe adoeceu, e poderia então muito bem substitui-lo por outro, exemplarmente por aquele que está dentro dum homem ou duma mulher felizes que ganharam na prática quotidiana o último degrau da divindade alcançada, fosse nas metas intermédias ou fosse na prova final que terá de vencer sem vacilar, se quiser ganhar o paraíso (sendo aqui uma metáfora duma realidade curiosa pelo seu peso etéreo correspondente). Porque se assim não for, que o diabo os contente, e deles se encarregue, enquanto não se cansar de o aturar. O diabo, sim, ou o diabrete ou belzebu que quando se farta também o agrilhoa, e o transforma no verdadeiro, cansado e sofredor Sisifo dos tempos modernos.
quinta-feira, 9 de Dezembro de 2010
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Conheça o decadentismo do fado português exposto neste quadro de José Malhoa do início do século XX:
http://ofadodemalhoa.no.sapo.pt/