VIAGEM A LONDRES
(RECORDANDO TAMBÉM PARIS)
de Rodrigo da Silva
Estou de malas aviadas para Londres. Aí permanecerei uma semana para aproveitar estes voos da Ryanair incrivelmente baratos (mas altamente perigosos para quem não souber mexer nas teclas do computador, nem estiver muito atento às datas e check-in ida e volta, nem comprar sacos de viagem apropriados), [veja nota de rodapé] (*), assim como os da EasyJet e Edreams, com descontos dignos de registo em bons Hotéis (atenção à escolha das acomodações, porque há barretes que se enfiam que nem vos conto: uma quarto de hóspedes mal amanhado, é às vezes anunciado por Hotel de grande qualidade e a baixo preço, mas que não o vale,`por vezes nem vale a metade do valor anunciado), e tarifas especiais no aluguer de carros. É certo que não viajo só nestes voos; há uns meses também descobri a Netviagens que tem preços surpreendentes e é empresa bastante fiável. E dou um exemplo: recentemente viajei até aos Açores, e tive carro à espera desde o aeroporto até aos hotéis de destino, e até onde quis, percorrendo as duas ilhas de lés-a-lés, e entregando-o à saída de cada ilha, em S. Miguel e na Terceira - a terra que venera o escritor e poeta Vitorino Nemésio. Porém, diga-se em abono da verdade: os hotéis eram muito bons, especialmente o da Terceira, um quatro estrelas super. Nesta ilha tive o prazer de conhecer pessoalmente e conviver, durante um serão, tendo como pano de fundo um piano bem tocado, com a renomadíssima poetisa popular açoriana, que se dá pelo nome de 'Rosa Silva - Azoriana' poetisa possuidora dum blogue muito lido na Internet: [ http://silvarosamaria.blogs.sapo.pt/863400.html ]. Indicou-me um viticultor Luís Brum [ http://silvarosamaria.blogs.sapo.pt/863867.html ], que nos surpreendeu pela afabilidade da sua nobre pessoa, com um amor inaudito à terra que o tornou famoso, e pela alta qualidade dos seus vinhos, um dos quais comparei ao nosso vinho do Porto 'vintage' tawny meio-doce das nossas mais gloriosas terras durienses e caves aqui monumentalizadas no cais de Gaia, onde resido perto, e, dei-me ao luxo de comprar algumas garrafas, poucas porque os aeroportos inspeccionam tudo e desviam muita coisa boa, ou sobrecarregam-nos com impostos demasiado incómodos e abusivos. Além deste nobre senhor, recomendou-me um bom restaurante (O Restaurante Tichoa) em terras da Serreta, sua vila natal, e aí fui recebido muito cortesmente com a minha esposa, como dois amigos preferidos, a pedir o que havia mais famoso na região: uma alcatra de vaca, que pelo sabor me pareceu mais uma chanfana das melhores da Lousã; a gerente foi duma cordialidade surpreendente. Ambos, Luís Brum e a gerente do Tichoa deixaram-me uma memória de sensações e emoções extremamente agradáveis; são coisas do coração que muito prezo a cada momento, e das quais vos vou dando conta, sempre que possível.
Mas avancemos para o que me interessa, sem antes vos contar algumas peripécias factuais e históricas, que me parecem relevantes: Londres e Paris para mim são conhecidas como os dedos das minhas mãos, peles e unhas, e também o que há por dentro. É a quinta vez que aí vou desde que me conheço, pois aí vivi cinco anos, um lustro a bem dizer, repartido a meio pelas duas capitais europeias. Vivi como um exilado, refractário à guerra colonial, à espera que os colónias se libertassem do jugo colonizador, só porque o major de cavalaria, Mouzinho de Albuquerque, ao serviço da Monarca nacionalista, D. Carlos, houve por bem ter imposto a subjugação desses povos pelas armas, em vez de sensatamente emparceirar comercialmente com eles, todavia, com um momento extremamente vexatório para os colonizados: quando ele capturou, por meios astuciosos, Gungunhana exibiu-o triunfalmente numa jaula pelas ruas de Lisboa; ele era o soba todo poderoso, homem gordíssimo acasalado com sete mulheres e com dezenas e dezenas de filhos, o imperador que dominava terras que pertenciam a etnias díspares: começavam nos macuas a Sul, e acabavam nos macondes a Norte, todavia e no entanto, ressalvo qualquer imprecisão terminológica e factual, pois já lá vão quarenta anos de distância e ausência desde que regressei ao torrão natal. Ao fim de um lustro (o que é uma infinidade de tempo para um jovem), resolvi regressar à Pátria (que nunca foi verdadeiramente minha, mas dos senhores donos desta coutada), e dois agentes da PIDE, na ocasião chamada por Marcelo Caetano por uma outra sigla, tentaram meter-me nos calabouços dum quartel militar, depois de ser arrestado depois de deixar Vigo e antes de Valença do Minho, não me largando mais até Viana do Castelo ou Póvoa do Varzim (já nem me lembro bem, tantos anos decorridos!), sem todavia conseguirem o seu intento, uma vez que intercedeu a meu favor o coronel Zagalo de Lima, Chefe Militar da Região Norte, conterrâneo de nascença, e era amigo de outro nosso amigo (familiar). Com um telefonema mandou o Chefe Zagalo, então, que aguardasse pela nova incorporação em 1965, tendo sido libertado de imediato.
Mas, foram as saudades da família e do meu natural poiso, das gentes que se me fizeram tradição íntima, que fizeram com que voltasse para cumprir uma missão que não era a minha (nunca foi): a guerra colonial imposta por uma dúzia de senhores feudais, ricos e poderosos, poisados na capital do País, governado por interesses económicos que me eram alheios também, nem nunca coincidiram com os meus, e até deles tinha dado referência em jornais, alguns dos quais censurados, e cortados pelo grosso lápis azul. Quando escrevi sobre Jean-Paul Sartre todo o artigo foi rejeitado pelos censores do distrito de Aveiro com um risco oblíquo. Sartre era efectivamente um literato-filósofo inimigo - um terror - do regime salazarista e os seus sequazes pidescos tremiam quando alguém se aventurava a falar dele na Imprensa como político e filósofo proeminente, figura de proa da civilização ocidental. Que foi e ainda é assim considerado.
E lá fui para Moçambique comandar um pelotão, depois interinamente uma Companhia entre os temidos Macondes, para fazer o que nunca havia de ter feito na vida: matar para não ser morto. Anos perdidos, nunca mais achados nem recuperados, dois lustros da minha existência que me tornaram primeiro taciturno e macambúzio na Europa, autêntico extra-terrestre, lunar se assim se pode chamar, e, na sequência, pelos efeitos da guerra, num normal e natural e comum cidadão, que aprendeu a ser como todos os demais, um alegre subjugado, dado a pequenos prazeres, tais como os da simpatia que se estabelecia entre a amizade conseguida, uma fraternidade conciliadora com os valores da ocasião (alguns adversos, outros perversos), as virtudes os princípios, os vícios e os defeitos que são todas as virtudes e princípios e todos os vícios e defeitos que vamos aprendendo e apreendendo uns com os outros, estes companheiros que nos acompanham em certas fases da vida por necessidade de não nos isolarmos da envolvência humana, e evitam de nos tornarmos uns alienados ou perturbados mentais.
Porém, e voltando ao tema da 'estranja', foram cinco anos de exílio vividos no meio de dois povos, que se não me eram hostis, pois conheciam bem o nosso problema colonial, e davam apoio aos exilados, tratavam-me, «malgré tout», como um estrangeiro afável, perguntando-me frequentemente se eu era italiano (especialmente na capital gaulesa) - devia ou devo ter semblante de italiano, Paris essa onde me apelidavam de Rodriguez - talvez porque há muitos rodriguêzes nesta península ibérica -, olhem que até a nossa Amália era Amália Rodriguez quando se exibia no Olímpia de Paris; paralelamente mas doutro modo, em Londres eu era o 'da Silva' como quem me queria enobrecer por esse «da» (anotem que eles são muito arreigados à monarquia, ou eram, agora não serão tanto, mas todas as vezes que falamos deles, já há décadas, falamos de mudança e nada acontece), e levando em conta o modo como me tratavam não se enganavam muito: a minha remota ascendência remonta ao Marquês de Marialva, que criou feudos por sucessão ilegítima ou abastardada por todo o País, terras que ainda se chamam Figueiredo; deles foi ilustre representante o comandante da Armada de Guerra nas expedições que traziam ouro do Brasil, José de Figueiredo, Oficial fiel ao rei, e em quem D. João V depositava toda a confiança, irretocavelmente merecida, agraciado mais tarde com o título de conde, pelos méritos reconhecidos pelo imperador português, com coutos doados por sua majestade em terras raianas, ali para os lados de Marialva, ao lado de Penedono e da Mêda, na região estrema da Beira Alta, onde erigiu um Solar (o dos Brasis) com capela; nesta relata-se simbolicamente numa pintura um milagre acontecido com ele na costa brasileira num dia em que o mar estava violentamente encapelado, capaz de engolir as suas galés; homem este também com um aspecto muito curioso: na fase final da vida abraçou outro desígnio, o de ser Padre, devidamente investido para a função pela ordem religiosa da diocese, mas sempre acompanhado por uma senhora brasileira negra, de quem teve filhos, radicados em parte incerta, e os herdeiros do abastado espólio, que legou, foram uns primos que se deram a conhecer depois da sua morte, familiares domiciliados na Régua.
Mal eles sabiam, os anflo-saxónicos que os Rodrigues são os filhos de Rodrigo, e o 'ês' significou durante muito tempo isso mesmo na tradição românica (os Henriques eram filhos de Henrico ou Henrique, Fernandes filhos de Fernando, Domingues filho de Domingo).
Ir lá pela 5.ª vez depois dessa vivência é como ir à minha saudosa aldeia; quando lá vou, cada vez mais espaçadamente, porque outra vida se sobrepõe à vida passada nesta última fase da vida corpórea; mata-se a saudade, especialmente das pessoas que amei e amo, familiares, amigos e conhecidos, alguns companheiros de escola e agora os seus filhos na meia-idade, mais ou menos, e embora sejam poucas pessoas, elas deixaram marcas saborosas no meu coração macerado durante um longa (quanto breve) existência atribulada.
Em Londres estudei numa Escola de Artes, outra de Comércio, aperfeiçoando a língua inglesa, e trabalhei como qualquer outro estrangeiro na Indústria Hoteleira e Turismo, empregos destinados a estrangeiros bem comportados. Foram trabalhos modestos como não poderiam deixar de ser: 'wine waiter' e 'banqueting waiter' (estudado o ofício por livros e com o ensino gratuito dum compatriota), verdadeiramente um trabalho que mal amanhei, sem ter necessidade de fazer o que faziam 99% dos portugueses e portuguesas: «lavar pratos» ou 'domestic work'.
Em Paris tive oportunidade de ser mais valorizado: recepcionista também da Indústria Hoteleira e intérprete numa Agência Oficial de Turismo (Syndicat d'Initiative como lhe chamavam). Percorri oficialmente toda a região de 'Champagne', ficando hospedado em Reims, sua capital, durante um verão, com um monumento digno de ser revisitado, uma catedral que é um espanto para os visitantes, além das visitas às terras da vinha e às caves vinícolas - Mumm e Taittinger evidentemente, além de outras marcas famosas. Aí pude exibir um pouco a minha faceta de poliglota, embora não fosse em mim uma característica de excelência, mas lá ia arrumando, como podia e sabia, com alguma habilidade, as necessidades de entendimento entre pessoas de nacionalidades diversas, muitos italianos, e muitos alemães falantes de inglês e não francês. Não faltaram nessa longa estadia também alguns estudos na Alliance Française onde me diplomei, assim como me graduei na Sorbonne, Universidade mundialmente conhecida pela qualidade do seu ensino e exigência. E foi também em Reims que li poemas meus na rádio local - Rádio Reis - traduzidos para francês, e um jornalista, Philipe Gobert, me entrevistou e inseriu poesia minha comentada por ele, numa página inteira do jornal mais lido por toda a Província do champanhe - L'UNION (datado de 1963). Pelo currículo obtido em Londres e Paris, fui logo admitido na classe do professorado nos Liceus, em Quelimane, Lourenço Marques (hoje Maputo) e quando regressei à Pátria, nos Liceus do Porto, onde me Licenciei na Faculdade de Letras, fazendo ainda um estágio didático-pedagógico para Professor efectivo.
Na verdade, quando disse que não poderia aspirar a empregos melhores, esta asserção tem uma explicação plausível; o curso da Universidade tinha sido suspenso devido à minha refracção ao cumprimento da obrigatoriedade de incorporação no serviço militar, faltando à chamada; Na verdade, o Exército quis incorporar-me um ano ou dois depois do começo da guerra em Angola, contudo eu já não podia comparecer, pois já estava em Londres; era lógico que sem um curso profissional não poderia aspirar a empregos que exigiam cursos à medida de capacidades quase nulas, mas esses mais modestos seriam cumpridos, apesar de tudo com a nobreza que dava ao que fazia. E estes não eram tão maus quanto isso, dado que em França o português estava destinado à construção civil (trolhas, sobretudo), outros indiferenciados na Industrial Automóvel, apertando parafusos nas linhas de montagem, e o serviço doméstico estava reservado para as mulheres e estudantes (criadas de servir ou 'baby-sitters').
Veremos se por lá encontrarei, na cidade londrina, um ou outro compatriota disposto a uma cavaqueira informal desenvolvida num serão à portuguesa; teria a sua graça... poderá ser numa 'wimpye house' (é assim que se escreve?) ou cervejaria ou cafetaria, num Museu, numa Catedral, num Jardim, junto à Torre de Londres ou em Trafalgar Square, no Soho ou no Harrolds, não importa. Que seja um homem ou mulher, ou casal, da comunidade lusófona também... seria bem apreciado um encontro ao acaso para esse fim. Talvez por lá encontre, como sempre encontrei no estrangeiro, pessoas de cá e de lá, que gostam de Arte, de Literatura, especialmente Poesia se ela puder acontecer, pessoas com quem se possam travar dois dedos de conversa, ou até mesmo num bar típico inglês a beber uma 'Guiness' ou 'Largger', tendo como pano de fundo o som dum piano ou duma guitarra. Não sei como se divertem hoje os estrangeiros, mas, no meu tempo, décadas de sessenta e setenta, usufruíamos destes passatempos e entretenimentos em Londres e Paris.
E já agora aproveito esta mensagem para apelar aos compatriotas ou lusófonos radicados em Roma ou Bolonha, em Novembro estarei por esses lados, vejam lá se conseguem um serão para cavaquear, sem caviar, como diz uma canção brasileira com muita graça (por causa do caviar que o cantor - aliás e melhor dito o autor da canção - nunca comeu por ser pobre).
Sábado, 04 e 14 de Setembro de 2010.
(*) A Ryanair não colhe reclamações via Internet, os telefones na Irlanda não atendem, não há assistência eficiente nem autónoma em quase todos os aeroportos, e cobra exageradamente na falta de cumprimento dos requisitos que publicitam. Se tiver algum problema, ficará certamente por nunca mais ser resolvido. É uma companhia pouco fiável.
Nota: clique no 'link' em baixo (e conhecerá um pouco da colonização de Moçambique):
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ngungunhane
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