GOZOS DE VERÃO
de Rodrigo da Silva
Do que mais gosto nas praias é observar a alegria das crianças a brincar. A alegria, disse bem, e o entusiasmo também, entenderam-me bem. A alegria que faz saltar, correr, esbracejar e parar junto aos amigos, pais, irmãos, tios ou avós, e sorrir de satisfação. Muitas vezes aproximam-se a resfolegar com os bofes na garganta. Em grupo parecem pardais dos meus jardim ou pátio, à volta da comida que lhes dou todos os dias, logo pela manhazinha. Aqui, os pardais chilreiam, carriças, pombos, melros, corvos, cucos, gaivotas trinam, cuculam, arrulham, grasnam, gorjeiam, cucam, de noite o mocho coruja, de madrugada o rouxinol rouxinoleia; lá, os putos clamam alto, gritam com estridência, vozeiam, vociferam, increpam, choram, assobiam. Brincam na areia ou ao sabor da última vaga na areia húmida, constroem castelos, banham-se no rebentamento das ondas. Não têm frio na água atlântica com 15.º centígrados. Para os entradotes na idade, já é gelada de mais. Atiram bolas, manejam raquetes com bolas de pingue-pongue ou de ténis, e entusiasmam-se com as peripécias de alguns em acrobacias circenses numa algazarra esfuziante.
Foi tempo em que ia lagartar-me ao sol, horas e horas, ou correr pela areia da costa até Aguda ou Granja quase sempre com os cães ao meu lado. Hoje já estão enterrados, o Brutus e a Twigui. Foram treze anos de alegria e lambidelas na orelha e nas mãos, beijos com paixão, e lá se foram os queridos bichinhos como tudo o que há-de ir, afagos e caudas mexidas com frenesim; pulverizaram-se para meu desgosto e saudade. Mesmo nesta altura e já lá vai um ano, quando abro a porta de casa e vou ao pátio das buganvílias e dos kiwis para os saudar; embora não compareçam à chegada, sei que estão aí à minha espera com a mesma postura de alegria e paixão. Não os vendo, dói-me a alma.
Também agora, que já estou mais gasto dos invernos passados e duma árdua vida profissional, quedo-me pelas esplanadas em frente ao mar, e apenas exercito os músculos e as articulações com a natação e a ginástica na piscina de água tépida e salgada, três dias por semana, em Espinho, no Solverde ou na Granja. Sempre que posso, e especialmente estou cansado da leitura e da escrita, nos dias de sol quente e radioso, brinco na praia com as crianças, especialmente com o meu neto e filhos ou netos de alguns amigos. Quando aparecem, e não é todos os dias que me visitam, jogo com eles a bola, lanço ao vento papagaios de papel, e peço-lhes a sua colaboração na elevação e manutenção da altura ideal para o “pássaro” voador não ziguezaguear ou cair, indo enredar-se no estorno das dunas. Nas esplanadas, faço-lhes desenhos, e peço para os imitarem e repetirem com a sua mão; são bonecos desenhados, figuras que aparecem por milagre num espaço branco duma folha do jornal ou nos guardanapos de papel da mesa que ocupo, caras alegres, gaivotas, animais, "snoopies", e outros bonecos que aparecem nos cartunes; falo a linguagem que eles falam com carinho, e assim vou fazendo amigos com o estio a decorrer mansamente; são os meus amiguinhos pequeninos.
Já fui como eles, assim, desprendido, não só na praia como nos campos, nos matos, nas latadas, nas veredas, vales e riachos, nas hortas e nos pomares, nas florestas. Ia às camarinhas nas dunas e matas do Furadouro, em grupo, era eu menino e também mais tarde como adolescente.
Observo de vez em quando pais que se zangam com elas e batem-lhes violentamente; fico mal disposto, apetecia-me bater neles (pais) também, porque desancam sem piedade nem finalidade acertada na inocência. São pais certamente que nunca foram meninos e repetem os açoites com que foram castigados enquanto mancebos, julgando que a pancada é a base da boa educação para a criançada… coitados, têm ainda muito que aprender!
Também olho para os adultos quase despidos na sua maior parte; exibem o que têm para mostrar, e às vezes o que não têm, julgando ter. Músculos, barrigas, magrezas e gorduras, boas silhuetas e más à mistura, cores mais ou menos bronzeadas, lá aparece um ou outro noviço branquinho como cal, pálido, outros escuros como os árabes ou negros, e ainda outros e outras parecem exibir-se como vedetas numa passerelle passeando à beira-mar. Óculos da moda, biquínis a deixar nádegas (ou bundas) e mamas quase-quase ao léu. Um fio tapa-buracos, designado comummente fio dental, a roçar os orifícios terminais de recto e da vulva. Lá mais distante, garotas em reduzidíssimo monoquíni. Nas dunas à distância um ou outro nudista sempre à espreita de alguma surpresa inesperada. Bronzeiam-se custosamente, alguns com prazer, e quedam-se na areia horas e horas sobre toalhas como lagartos ao meio-dia. Tisnam-se para ficarem lindos e com o aspecto saudável do melhor burguês. Alguns pares de namorados (ao que julgo) estão perto um da outra, aqueles ali mais à frente estão enrodilhados, ora encavalgados, ora encavalitados, afogueados pela quentura solar e pelo despoletar repentino da líbido... engalfinham-se numa ebulição cheia de adrenalina, e roçam o feno púbico, eriçado, endurecido, assim como amassam a gelatina mamária com mamilos a entumescer numa tarefa ofegante para preambular com tempo espaçado o desempenho duma noite de loucas cavalgadas (pois que durem por muitos e infindáveis anos, se é que isso é possível nos nossos dias!)…
Alguns pares falam como irmãos, outros com a mansidão dos eternos enamorados, e é bom sentir que se amam. Não há dia que não passe nestas bandas de Francelos ou Miramar uma aeronave, um helicóptero, uma geringonça voadora - papagaio com motor e hélice atrás. Curiosamente, no areal as gaivotas aproximam-se dos veraneantes cada vez mais; ou é da fome ou a procura de restos de comida. Só os surfistas e kitesurfistas é que desapareceram, pois agora têm zonas delimitadas onde praticam o seu desporto favorito.
Quando os amigos aparecem, a conversa percorre as teias do cavaco fiado, um dia ou outro mais refinado: um evento em voga, uma preocupação obsessiva, uma chalaça, uma anedota, a última asneira do governo, uma medida ajustada, doenças próprias e alheias, alimentos saudáveis, acontecimentos jocosos, férias passadas no estrangeiro ou cá dentro (mormente o Algarve), um escândalo da revista cor-de-rosa, um artigo jornalístico exemplar, outro tendencioso.
Ouvimos, sem querer, falar ruidosamente de futebol com calão à mistura. Umas cervejas a mais, e aquele ali defronte só profere asneiras em voz alta, tão grossas que enjoam! Algumas tiradas até têm piada; outras enojam mesmo, e por isso quando acontece, desistimos passado pouco tempo da ocupação da mesa onde estamos, e arredamo-nos.
Revista a panorâmica: a bola, sempre a bola, batida, chutada pelo ar e o mar, ao perto, e ao longe com barcos de pesca, lanchas de desporto, mais longe ainda os iates, e por último os navios e os cargueiros lá mais ao fundo. O mar adquire o aspecto dum espelho ondulante com muitos sonhos movimentados.
Hoje o oceano parece um lago, amanhã estará agitado, mas permanece sempre uma sensação de que sem as crianças, sem as gaivotas, sem as ondas e o seu marulho, todo o espectáculo perderia a sua graça ou encanto. Estou na esplanada e chega a amiga com a neta, a Mariana, pergunto-lhe hoje se vamos desenhar, sim vamos, responde, e eu faço, e ela rabisca, dou-lhe uns retoques no que ela faz, agora nasce uma gaivota e ela não consegue imitá-la, mas tenta, volto a corrigir, ela fica feliz, traz a vaquinha que não larga de modo nenhum debaixo do braço, com nome: a Mané, desenhei-lhe a bichinha felpuda, e ela gostou, e quando se despede leva o pedaço de papel desenhado com a Mané; mete-o na bolsinha como recordação para colar no álbum próprio, destinado aos favoritos e dá-me dois beijos cheios de ternura. Depois vai beijar as amigas convivas mais entradotas, e regressa no fim das despedidas, repetindo os dois beijos que me deu. Ganho assim o dia bem recompensado, sem qualquer esforço mas com graça, ao preço de um café e um copo de água. É a quarta ou quinta vez que leva coisas que desenhamos em conjunto. A avó Aurora com as senhoras da mesma mesa fala das coisas mais triviais deste mundo e estão felizes por eu estar a entreter a menina com quatro anos de idade quando muito. E vem contar num outro dia depois que a Mariana se me refere muitas vezes em casa, é o amigo da praia de Francelos, o R. que a diverte tanto com as coisas mais simples deste planeta, desenhos e mais desenhos entrecortados por expressões gostosas para duas crianças, pois nessa ocasião não somos nem mais nem menos que isso mesmo, ambos. Surpresa: ela não é uma criança que grita nem chora, nem leva bofetadas como as outras, é uma das que vem para se divertir com prazer e como uma menina bem comportada, que gosta de conviver na praia com a avó, e quando esta vem ter com as amigas, pergunta sempre pela minha pessoa, se também vou comparecer lá. A avó não sabe, mas às vezes vou.
E finalmente desculpe o concidadão que está enfermo e a sofrer, ou hospitalizado, condoído, estes gozos de verão, se por acaso me ler. Contudo, também pode acontecer que fique contagiado com esta alegria, e assuma a minha autoria, a interiorize e viva-a como eu. Na verdade, alguém me disse, e já não sei quem foi, que também este milagre é muito possível e até é frequente nestes casos.
02.07.2010