HETERONÍMIA MUITO MAL CONHECIDA
por Rodrigo da Silva
Tanto quanto concluo pelo estudo e pela análise em pormenor dos escritores, poetas e dramaturgos, ao contrário do espanto e menosprezo que noto em leitores, alguns conhecidos e com projecção internacional, mas que me são adversos, é que a heteronímia anda por muito lado muito mal conhecida e interpretada. Até mesmo em poetas conhecidos da nossa lusófona praça, alguns que teriam obrigação de ir muito mais além do que demonstram desdenhosamente na realidade ao falar de heteronímia, pois ignoram por completo esta área da realização estética literária. Dei-me por isso desta vez ao cuidado de apresentar cinco tipos ou géneros de heteronímia que vou desenvolver, até onde consegui chegar e ser entendido, mau grado saber à partida que só os aficionados às minhas escrita e pessoa é que não perderão pitada, e alguns até comentarão suficiente e capazmente, ainda que outros, por não lhes sobrar muito tempo para estas coscuvilhices eruditas, apenas digam “presente” ou aqui estou como sempre na tua companhia; palavras às quais fico sempre muito grato. Escalpelizarei assim: o Actor, o Demagogo, o Sedutor, o Narrador e o Poeta.
Quando um actor entra em palco traz consigo uma personalidade diferente da que é no mundo real, uma postura reactiva distinta da que exerce entre as pessoas que o conhecem diariamente. Todos concordarão com isto, pois é evidente o que afirmo, e se quiser banalizar esta afirmação dir-se-á que é uma verdade lapalissada. Diríamos que ele adquiriu a existência de outros ser, estar e parecer, diferente do que é normalmente nas suas aparência e conduta. Sabe ele destarte que assumiu o estatuto da heteronímia, e se não souber fica agora a saber, e até porque ainda é tempo. Até o nome se distingue. É raríssimo ser o mesmo, uma vez que incarna outros carácter e personalidade.
É o mesmo estado do demagogo, dado que este pode ser o maior patife existente à flor do planeta, mas assume outra aparência que não é a dele. É a estudada figura polida, sabichona, ainda que só evidencie alguns conceitos muito limitados de filosofia e política e arte numa sociedade distraída e em corrupio, e que ademais também não é muito culta, nem tão pouco suficientemente sabedora, além de que também nunca conheceu bem o malandreco, uma vez que normalmente o patifezinho aparece neste palco da vida ou nesta feira de vaidades, de repente, novato na idade, quando não é mesmo adulto, mas tendo mantido até então um «low profile» de ratinho escondido com rabo dentro; toda a gente começa a perguntar quem é, sem ninguém conseguir responder; só os muito chegados a ele o conhecem de ginjeira, mas como são amigos fazem grupo ou na ponta final uma espécie de quadrilha. Ele é simpático, envolvente, convicto, emproado, ainda que passado o tempo do benefício da dúvida, se contradiga mês sim, mês não; ele é impoluto sobretudo, tendo em vista que na maior parte das vezes a Justiça é ceguinha como a toupeira, quando lhe convém particularmente, e algumas vezes "o dito cujo" passa por cima destes «amigos» que também o são, quando se inteiram que a coisa promete dar frutos de promoção e prestígio contagiosos, com cruzamentos familiares do tipo tabelinha futebolística (mas é nessa altura que começa a putrefacção do conjunto, como o sucedido no tal cesto com a tal maçã podre que apodrece ou corrompe ou putrefaz todas as outras). Um pequeno núcleo do topo (in)justiceiro dá-lhe cobertura, o que transforma o conjunto numa equipe do tipo finório ameaçador e arrogante com azelhas lá pelo meio e incompetentes apadrinhados a vilipendiar os valores morais ou éticos da Nação. Retomando o tal demagogo, hoje ele faz cara de bonacheirão, amanhã de homem assanhado, depois de amanhã apresenta imprevistamente uma cara de poucos amigos e amua. Ameaça quando se vê ignorado ou maltratado e cumpre impunemente a palavra malfeitora. À socapa e em espírito de grupo, quando não é quadrilha circunspecta, é muito capaz de exercer as mais fortes e destemidas influências aterradoras para arruinarem a carreira dum docente desbragado na boca por uma tonteria ocasional, dum político mais fracote entre a família ideológica, dum analista anarca pouco experiente, ou dum jornalista irreverente que não lhe é, por temperamento e ideologia, aficionado nem muito menos concordante. Só que o que se passa aos níveis da Dramaturgia (ou da Cinematografia) e da Política, não é igual, nem de longe se parece pela ignomínia, ao que sucede ao Autor que se desdobra em pseudónimos, altérnimos ou heterónimos por razões esteticamente literárias, voluntárias ou involuntárias.
Aí ficaram retro-analisados dois géneros. Vamos agora falar dos outros três.
Na panóplia destes tipos ou géneros, o mesmo acontece com os sedutores de mulheres, enquistados pelo espírito do Marialvismo ou do D. Juanismo, isto sendo, expresso por outras designações que cracterizam estes malandros anteriores: pelo cinismo e pela hipocrisia. São estes igualmente actores teatrais ou cinematográficos, com uma diferença enorme: estão no palco a interpretarem obras num espectáculo quanto possível de verosimilhança para ser visto e apreciado pela plateia expectante sem causar danos a ninguém; e, pelo contrário, agem para tentar corrigir deficiências humanas milenares, anteriores ao querido auto-denominado, com muitíssimo orgulho e muito maior vaidade, de «homo-sapiens»; a expressão é já tão velha e gasta que um dia destes se vai auto-intitular seguramente de «homo sapientissimus» com direitos putativos a promoções generalizadas de tirocinados à aquisão da vulgata "honoris causa" por dá cá aquela palha!.
A substância da idiossincrasia dos sedutores marialvistas é igualmente maquiavélica. Não olham a meios, estes figurões, para atingirem os seus fins. O seu propósito é a conquista da mulher atraente, carente ou iludida, ansiosa pela aquisição duma vida afortunada, seja duma relação amorosa paradisíaca, a que sendo aberta à aparição do príncipe encantado as leve de vencida, mesmo que seja pelo rapto até ao altar estendido majestosamente para toda a vida; isso mesmo: aspiram naturalmente a uma semelhante vida ilusória, numa inventada estória lida nas páginas de revistas cor-de-rosa ou nos romances de cavalaria, ou ainda no renovado romanesco da época romântica, que aliás ainda se vende bem, e jamais deixou de se vender. Sintomaticamente, as salas de cinema com filmes indianos onde agem esses amores arrebatados, empolgantes e por necessidade artística também trágico-dramáticos; as salas estão sempre cheias e durante longo tempo para consolo dos empresários. Sem falhar: há mulheres que dizem no fim – adorei e até chorei. A finalidade dos sedutores, a quem as mulheres chamam de homem “charmoso”, atraente, interessante é a conquista do poder, como sendo qualidade pessoal intransmissível e incontornável, para dominar um grupo ou Associação ou Partido; contudo, este terceiro género destina-se a exercer esse domínio sobre as mulheres que o atraem. Sempre que possível, mais do que uma, muitas porventura e quantas mais melhor para satisfação plena do seu ego. Porém, podem enganar todo o mundo com plavrinhas mansas, mas o seu intuito é subjugar, outrem ou outrens, por impulsos instintivos e os estudados também. Convém dizer, para sermos imparciais, que o género não é reservado só ao homem, pois que a mulher é capaz de exercer essa mesma prática farisaica. E os exemplos são abundantes. Na vida privada, a mais putativa, são capazes de trair, atraiçoar, zombar da pessoa que passou a pertencer-lhes aparentemente, ou das pessoas que se deixaram submeter; todavia, enquanto não são desmascarados vivem duma ilusória realidade: a de que são vitoriosos, inquestionavelmente vencedores, espertos/as, muito belos ou belas... e muito inteligentes. Podem ter duas dessas características, mas as três conjuntas não as possuem decerto. É que efectivamente não são inteligentes; a inteligência nada tem a ver com a mentira e o engano, e muito menos com o dolo e a traição. E é bom que se diga isto quantas vezes for preciso e para sempre.
A expressão máxima da heteronímia na área literária é sem dúvida Fernando Pessoa. E neste senhor artista-literato nenhuma das características anteriores se lhe ajustam. Também não foi o único escritor ou poeta a adoptar a heteronímia; aliás quando um autor escritor ou poeta cria uma personagem caracteriza-a e dá-lhe vida própria, no fundo e na realidade esse autor incarna na descrição e na narração a outra pessoa. Desenha, pinta, esculpe, arquitecta outra pessoa que não é ele - autor. Conhece os seus gostos, as suas reacções próprias, o seu pensamento singular, o seu carácter e a sua personalidade.
De Fernando Pessoa criou-se o mito do que todos sabemos: este de que ele desdobrou-se em e foi 72 heterónimos. Mas também isto é bastante ilusório ou surrealista. Peremptoriamente não foi. Eles (72) todavia não são distintos ou diferenciados como talvez poderão alguns querer convencer-nos. Podem distinguir-se em toda a obra, no máximo, três ou quatro diferenciações, ou seja, três ou quatro poetas diferentes, não mais. Às vezes intercepcionados intratextualmente. Sabe-se até que ele adoptou num heterónimo (Alberto Caeiro) o panteísmo como filosofia de base, e noutro o holismo*, confundido por alguns críticos com o paganismo, igualmente eivado de epicurismo (sem olvidar nunca os avançados estudos que fez no rosacruzismo, filosofia religiosa influenciadora de parte da sua obra) ; formalmente num heterónimo assumiu uma poesia moderníssima (Alberto Caeiro), noutro o mais puro classicismo (Ricardo Reis), neste caso sem ligar muito às sonoridades que nunca o preocuparam, tão cerebral foi, ainda que reclamasse o direito para ele da sensação abstracta! Pela certa, o pastor Caeiro não é mesmo que o médico Ricardo Reis. Isto assim dissecado, apenas para dizer que ele não criou personagens como faria um romancista comum e normal, mas foi personagens dum romance duma vida singular, que só os críticos conseguiram desvendar. E quer significar outrossim que ele incarnou personagens do romance que não escreveu, mas dele escreveram os exegetas admiradores, que nunca o deixaram a descoberto. Teria sido certamente um bom romancista, se não adoptasse a postura do poeta possuído por outros entes, espécie de médium sob a capa do delírio, da alucinação, do álcool, da cafeína, do ópio (?), ou do absinto (?). E o que declaro não o desmerece, e não é de modo nenhum menosprezo pela sua genialidade. Possivelmente pode ser até veneração, o que é outra coisa diametralmente oposta, ainda que o crítique quando devo e quanto me é agraciado poder ser. Contudo, e ademais, o que mais me compraz nele é a novidade de escrita e estilo exercidos no Livro do Desassossego, porque noutros escritos em prosa acho-o bastante banal quando fala do anarca, do comércio e da política. Além disso, e, pelo contrário, na poesia, com excepção de alguma adopção estética bastante linear e, ou denotativa, de Álvaro de Campos, ele é um mestre da poiesis** na maior parte da sua renomada obra, estudada em todo o mundo, para além do mundo lusófono, e alvo de inúmeras teses aqui e além-mar intercontinental; e o seu ideário é fabuloso.
08 de Julho de 2010
Alguma documentação internética de suporte:
*http://chinternacional.multiply.com/journal/item/5
**http://en.wikipedia.org/wiki/Poiesis
http://chinternacional.multiply.com/journal/item/5
http://pt.wikipedia.org/wiki/Don_Juan
http://site.miguelvaledealmeida.net/wp-content/uploads/marialvismo.pdf
http://pt.wikipedia.org/wiki/Pante%C3%ADsmo#Pensadores_pante.C3.ADstas
http://www.cchla.ufrn.br/cronos/pdf/9.1/r2.pdf
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa