O GRAU ZERO DA CULTURA
(acerca de GEORGE STEINER)
por Rodrigo da Silva
O diagnóstico da saúde cultural do Ocidente é tão tímido quanto alarmante. O divórcio entre a cultura tradicional e a subcultura quotidiana deixa muitas portas abertas para soluções imponderáveis, enigmáticas, contundentes. É como se estivéssemos num mar morto, denso, escuro, turvo, e procurássemos um rumo animador, sem termos a certeza que se consiga ultrapassar um túnel cada vez mais negro, com um obstáculo que se aproxima passo a passo sorrateiramente sem visiluazizarmos nenhuma luz e porta de saída. É que além de não haver porta, janelas é que não existem, nem é possível voltar para trás. George Steiner crê que possa haver uma esperança de renascença, depois de se conseguir constatar que esta sociedade, sem normas morais e/ou éticas, é uma uma civilização à procura cega da sua própria auto-destruição. E o que é irónico é que, ao constatarmos quais são os defeitos e deficiências desta cultura rasa prevalecente no quotidiano, nos deixemos conduzir sem todos nos empenharmos numa solução final - a reconstrução de valores e princípios que nunca perderam nem perderão a sua validade no sentido da salvação da humanidade.
Das conclusões a que George Steiner alcança nesta conturbada situação actual é que o intelectual de hoje é um ser muito mais exigente consigo mesmo na busca de conhecer bem o mundo em que vivemos, dando preferência a uma inter-relação entre o que deve ser assumido pelos actuais terráqueos, equacionando os avanços científicos e tecnológicos em todas as áreas do saber, e a inclusão destes saberes de ponta nas obras que cada um deles leva a efeito em cada uma da obra construída artisticamente; sobretudo nas Artes e nas Humanidades.
Ler atentamente George Steiner, o antropósofo mais conhecido no Ocidente e uma das suas referências incontornáveis na filosofia moderníssima, é uma imposição necessária e imprescindível acrescentada pelo dever de ser assumido com urgência por todos os poetas, literatos, musicólogos, compositores, pintores, desenhadores, escultores, arquitectos e cineastas. Quem não o fizer corre o risco de ser apenas mais um aspirante a artista intimista, espontaneísta, repentista, cegamente intuitivo e em última instância naïf, como ainda existem alguns nas praças nacionais.
Os outros, os que o lêem atenta e abertamente, e não só a ele como a mais alguns Mestres tão bons, ou melhores do que ele (facto que duvido ser possível), a cultura nunca mais evoluirá; e esta que se impõe no quotidiano não passa do seu grau zero, ela é a do mau gosto, a do disparate, a do prazer ostensivo pelo linguajar na forma de gíria e de calão. Esta espontaneidade da vulgaridade já foi tranferida para a estética, ela está generalizada num mundo acobertado pela apatia e indiferença (desconhecedora das consequências de tais atitudes para mal e envenenamento da nossa civilização).
Efectivamente, se ela cresceu imensamente nas áreas científica e tecnológica, na prática o cidadão comum, a massa mole nacional e internacional vai regredindo lustro após lustro, um retrocesso que aponta irremediavelmente para a sua origem - a idade das cavernas. Há já hoje milhares de cidadãos a dormirem debaixo das pontes ou sobre a ventilação dos respiros dos metropolitanos nas ruas das nossas grandes urbes, assim como em casebres sem nenhuma condição de salubridade nas suas imediações, condições estas indignas do auto-intitulado «hommo sapiens».
Volto a frisar alguns conceitos importantes de George Steiner, sem plagiar os seus textos, apenas comentando e parafraseando algumas ideias, num estado da mais pura admiração e reverência (porque as acho assertivas): a cultura vive divorciada da condição humana diária. Uma cultura pode ser muito elevada, porém, o comum dos mortais não a leva em conta, não a segue, não a adopta nem assume, está-se nitidamente nas tintas para ela ou se quiserem borrifando-se nela. O que conta para ele é o seu modo de vida pessoal, individualizado, a sua luta diária pela sobrevivência ou pela dignidade - a sua pessoal e a familiar. O vizinho não lhe interessa, e ele nem sequer o cumprimenta nos elevadores de cinco a vinte andares das grandes áreas metropolitanas. Alheia-se da ambiência. A polis não gera política nenhuma que cure o cancro duma cultura regressiva em forte e rápida expansão.
Por causa deste desinteresse público, a cultura tem sido por excelência elitista, e não importa também no lugar reverso, não se incomoda com a devastadora, gritante e escandalosa (obscena e pornográfica até), diferençiação de estatutos entre ricos e pobres, entre demagodos e altos dignatários sociais com condutas impecáveis, entre pessoas carenciadas de quase tudo e outras de tudo mesmo.
Dêmos uma volta rápida pelo passado: com efeito, o séc. XVII deixou de ser uma época de esplendor, e ela foi-o em boa verdade, no Renascimento, porque hoje não tem qualquer significado para as massas moles e iletradas, populares, falar nos renascentistas. Os Medievalismo, Românico, Gótico, Barroco, Gongorismo, Manuelismo, Neoclassicismo, Romantismo, Iluminismo, Realismo, Impressionismo, Parnasianismo, Barroco, Arts Nova, Rococó, Nova Arquitectura, Evolucionismo, Antroposofia, Relativismo, Evolucionismo, Simbolismo, Dadaísmo, Surrealismo, Existencialismo, Essencialismo, Estruturalismo, Energias nuclear e quântica, C.E., Liberalismo, avanços espantosos da Medicina, aparição monstruosa do terrorismo islamista, reajustamentos do equilíbrio mundial económico e financeiro com os Países emergentes (Brasil, China e Índia) foram apagados da História definitivamente para a massa mole humana, apenas guardada nas cabeças pensantes dos nossos tempos, investigadores e docentes (na maior parte universitários). Mas para quê? Com que utilidade prática?, podemos logicamente perguntar, uma vez que estão anulados no quotidiano, ademais, três milénios de civilização. Estamos, desta maneira, num período de mudança para pior, para o grau zero da Cultura; o antigo vocabulário, a gramática normativa e/ou canónica esgotaram-se, e já não é possível retroceder ao passado saudoso e saudável, no que diz respeito às relações humanas entre pessoas e povos. Não foi por acaso que Bertrand Russell apregoava há cinquenta anos a necessidade de um Estado de Direito Internacional, acabando com as divisões territoriais, um Governo que governasse o planeta à escala planetária, temendo justamente pelo futuro do homem calcorreante do chão deste globo esférico, o qual se chama Terra.
E atente-se bem e jamais se esqueçam: numa época em que a cultura florescia e era esplendorosa, no início de séc. XX, ela, hodiiernamente, face à barbaridade que sobretudo na Europa se desenvolveu, provinda da perversão e da distorção de virtudes e valores, de nada serviu - a cultura não prestou para nada. Não impediu minimamente os massacres, o holocausto, e, pasme-se, o cristianismo alheou-se por completo de intervir contra os acontecimentos criminosos que estavam a decorrer nas duas guerras mundiais, e ainda, pouco tempo depois, houve massacres no Cáucaso, na África Central, no Médio-Oriente, no Tibete, na Ásia, na Indonésia. E mais, o Papa católico, apostólico, romano, recebia com toda a cortesia os ditadores aspirantes a imperialistas nessas épocas. O Catolicismo (assim como outras religiões), alheou-se completamente, ou seja, pôs-se de lado, como se o horror do crime nada tivesse a ver com a moral apregoada apostolicamente nas homilias dominicais.
A nossa cultura diária é a cultura do imediato, da moda, da voga, do kitsch, da imitação psitacista, sem nenhuma peocupação pela glória, ou pela imortalidade, ou pela transcendência. Efectivamente, ela é agora um lugar de destruição em vez de ser um sítio de aprimoramento. A vulgaridade é a atitude adoptada e a única que conta neste mundo, este no qual se perderam, ou esfumaram valores e virtudes tradicionais, com esta agravante: cada dia que passa o homem comum vai descendo mais um degrau no escada outrora ascendente e agora descendente, aquela que dantes apontava para o céu da perfeição e hoje se apoia no lodo mais abjecto e na conspurcação animal do lindo planeta a que chamam com alguma displicência - Terra.
15 de Agosto de 2010
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Frases de George Steiner: « Não foi por acaso que dois espíritos visionários mais sensíveis à crise da ordem clássica, Kierkegaard e Nietzche, viram na música a expressão essencial da energia e do sentido»;
« O que se passa agora é algo de novo: trata-se da tentativa de uma ruptura (cultural). O resmungar do marginalizado. o "vai-te foder" do "beatnik", o silêncio do "teenager" na casa adversa dos pais (onde coabita) tendem para a destruição (da humanidade).
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Obs. Aconselhamos os leitores a fazerem um estudo aprofundado do córtex cerebral para terem uma ideia de como é estruturado e o que é feito do homem, e pensem bem no humanóide em que pode ser transformado.
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N.B. Sem o conhecimento destas noções básicas: o cálculo integral, a topologia e a análise matemática, ninguém pode aspirar a ser considerado letrado ou artista hodiernamente.
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Autores e obras a consultar sobre esta temática:
George Steiner
A Linguagem do silêncio de Edward T. Hall
A Era do Vazio de Giller Lipvetaky
Homens em Tempos Sombrios de Hannah Arendt
GAIA SCIENZA
Tito Perlini
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