Poetas amigos, companheiros,
É um prazer estar convosco neste convívio que celebra o dia mundial da Poesia no Martinho da Arcada.
O local é mítico, a ambiência presente é mística. Esta iniciativa implementada pelo nosso PoetAmigo Rogério Simões é louvável a todos os títulos nesta circunstância. Estamos aqui presentes para dizer que gostamos dele como poeta e como pessoa. Respondemos à sua chamada para rendermos homenagem também aos artistas que por cá passaram, aos nossos Mestres da Língua e Literatura portuguesas e de igual modo aos artistas de outras formas de expressão artística: a Música, o Canto, a Declamação e a Pintura.
Repito: o local é mítico por haver mulheres e homens que ficaram na História pela sua genialidade na composição de obras de Arte; olhando estas imagens nas paredes do Martinho da Arcada, vemos que a sua memória foi preservada neste espaço.
E também é místico porque há uma comunhão sentida entre todos os espíritos: a comunhão na feitura da obra que se fez Arte provinda do vazio e esta é uma forma de reconhecermos que não é só sonho, mas igualmente o espírito e/ou a alma, que comandam a vida no seu sentido diacrónico em direcção ao Futuro.
Ao pedir-me um apontamento neste dia e local, Rogério proporciona-me a honra de começar a enquadrar a celebração no seu contexto próprio, sem que eu merecesse esta distinção. Sou um poeta simples, às vezes com laivos de erudição, não ambiciono ser poeta melhor do que outro qualquer, porém almejo a ser diferente, e o mérito que obtiver não serei eu quem o atribui, mas certamente o que me for atribuído pelos meus pares e pelos leitores/ouvintes. Assim dito, tão só e cruamente. Todavia, ademais digo àqueles que não gostam: não há motivo para desistir desta Arte porque há muita Poesia ao dispor de todos os gostos, basta escolher a que mais agrade a cada um.
No fundo, todos nós estamos cá neste espaço terreno, para deixar algo surpreendente, algo deslumbrante, algo novo ou renovado mesmo que seja dito por formas e signos gastos pelo uso. Recriamos, como se estivéssemos no recreio, as substâncias e as formas da Beleza e do Bom (incluindo o Bem). Trabalhamos nessas áreas, vamos investigando e estudando, interiorizando e exteriorizando textos, mensagens, imagens, às vezes com esforço e suor, contudo sempre com o prazer de estar a exercitar o acto criativo ou criador.
A poesia escolhida por Rogério Aniversário de Álvaro de Campos para ilustrar este convívio, é muito significativa:
ANIVERSÁRIO
ÁLVARO DE CAMPOS
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No... tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma, De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Pára, meu coração! Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus! Hoje já não faço anos. Duro.
Somam-se-me dias. Serei velho quando o for. Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...
15/10/1929
Acerca desta poesia apraz-me dizer o seguinte para a relevar no contexto aqui produzido.
Como sabem a poesia de Fernando Pessoa, ortónimo e heteronímico, é vasta, multiforme, pluridimensional e multifacetada. Ele é um poeta múltiplo, esparso em 72 pseudónimos, encarnando como um demiurgo ou médium outros poetas com individualidades distintas: nos nascimentos, profissões, filosofias, estesias e com produções diferenciadas.
Actuou também poderíamos dizer como um romancista que cria as personagens duma narrativa e lhes dá vida com ou sem morte programadas.
Pois, nesse poema Aniversário atribuído ficcionalmente a Álvaro de Campos refere-se ele aos seus aniversários enquanto menino, e aí se reflecte uma das facetas do ortónimo que o acompanha pela vida fora até ao fim: a saudade da infância feliz e a tristeza do homem em que biologicamente se tornou.
E porquê este retorno à infância, a esse período de tempo em que o ser ainda não tem consciência do desejo e de Eros? Porque a inconsciência desse período andrógino é alterada na mudança humanamente operada ao nível psicossomático; a mudança origina a perda da felicidade original, aquela que porventura remonta à origem desse estatuto; porém, ela causa a abertura da caixa de Pandora, originando a existência dum outro estado no qual todos os males e misérias deste mundo são possíveis.
Outros poetas têm associado o sexo ao mal ou imaginam-se junto de outras crianças sem essa consciência de sentir desejo sexual ou amor erótico.
Samuel Beckett pela voz de Willie a Winnie, em Dias Felizes, diz a certo momento: «Sim, julgo às vezes, considerando a diferença hedionda entre a inteligência das crianças e a estupidez dos adultos, que somos acompanhados na infância por um espírito da guarda, que nos empresta a própria inteligência astral, e que depois, talvez com pena, mas por uma lei alta, nos abandona, como as mães animais às crias crescidas, ao cevado que é o nosso destino»
Se levarmos a sério esse destino, ‘cevado’ é o que aparentemente fazemos aqui ao festejarmos este dia com um repasto saboroso, como fazia a pequena que se deliciava com chocolates na Tabacaria. Todavia com esta diferença: o ‘cevado’ que nos dilicia tem um significado, no nosso caso, que o transcende, sendo esta comunhão espiritual e/ou anímica que nos une alquimicamente. A amizade é um bem inestimável, um elo que nos prende à vida e a conforta, e o amor, quando o há verdadeiramente, é o feitor da felicidade possível neste mundo. E tudo isto dito ao contrário do que explicitava o nosso Mestre na dimensão que o caracteriza como niilista ou pessimista metafísico.
Para finalizar esta propositadamente curta intervenção, digo: por um lado estamos neste momento a celebrar três aniversários: o de um dia destinado a celebrar o dia da Poesia, e, por outro, o dia em que seria o Aniversário do Poeta, fora da data, de Álvaro de Campos, assim como o 'dia da floresta'. Contudo, estamos a celebrar Fernando Pessoa, como também todos os artistas que passaram por este local, e hão de continuar a passar por cá, como quem entra num templo destinado ao convívio pelo culto da Arte no respeito e admiração pelos antepassados e presentes, em qualquer momento histórico vindouro.
Daniel Cristal (Armando Figueiredo)
de Rodrigo da Silva Esta crónica foi motivada por uma poeta chamada Eliane Triska, conhecida no Brasil e em Portugal (e ...